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“Há no apreço da Poesia diversas atitudes correspondentes à criação poética necessariamente sujeitas à dimensão temporal. Os princípios de um poeta enleados em tentames, e busca do próprio caminho, a escavar com o pequenino aparo os veios que, acaso, hão-de ser os decisivos, pedem do crítico uma atitude, uma disponibilidade muito diferente do saboreio de uma poesia já segura das suas constantes, em pleno florescimento, no domínio da expressão certa, mesmo quando o poeta, por humildade, intitula um livro de “Canto Incerto”. Acontece porém que há letrados que estão sempre à espera de aberrantes novidades, de processos insólitos, que bebem os ventos pelo nunca visto, nuca ousado. E fazem-no às vezes antes de percorrerem os caminhos onde as flores floresceram, onde os cardos picaram, onde a poesia autêntica vencedora das eras revestiu o Parnaso de harmonia e de beleza. Tantas vezes a novidade está dentro de ritmos, de formas, de metros com vigência à flor dos séculos, com emprego nos Cancioneiros, em mestre Gil, em mestre Camões, em mestre Garret, em mestre João de Deus, em mestre Pessoa. Há quem pense, e cremos que bem, que todo o poeta, o criador literário, deve escutar as vozes íntimas e não dar todo o cuidado ao rumorejo exterionista dos processos, aos temas em curso que, por osmose se nos comunicam do exterior à sensibilidade.

Soledade Summavielle dá prova, neste livro de poemas, de uma fidelidade cada vez mais apurada ao seu instinto de beleza, às constantes do seu temperamento e ser. Versos puros, concentrados, de uma suavidade onde punge um simbolismo com liames para a vida; para a vida de solidão, para a vida de convivência para a saudade dos que se forma pelas portas da morte ou da ausência. O tempo, a dimensão temporal em que decorre se enquadra a nossa vida, irisa-se nesta Poesia saborosa de um mistério que propicia a poesia pura tão do agrado de Brémond.

Dimensão temporal

 

No varanda do dia,

O bambu do meu corpo reclinado

Descansa de uma longa caminhada

Não me dói a saudade do passado

À memória do tempo abandonado,

Nem tão pouco a pergunta sem resposta

Do futuro caminho a percorrer.

Só mata a sede a fonte do presente.

Oiço um canto subtil de água corrente,

Desço a escada da vida, e vou beber …

 

De modo geral pode dizer-se que o título é significativo.

Dentro do “Búzio” ecoam remotíssimas as vozes de esperança e de alguns desalentos. Como os rumores do caracol marinho, estes versos, estes poemas vigiados, valorizados pelo esforço de concentração e límpidos na expressão, trazem-nos a voz do longe, da vida vivida e das ânsias do futuro. Poemas onde a lembrança transita para a esperança.

Tempo de espera

 

Qualquer coisa que dói neste silêncio,

Neste tempo de espera e de ansiedade.

Sem paz, que não a deste, flor nocturna,

Orvalhada de ausência e de saudade.

 

Lusiram e silvaram na distância

Estrelas e serpentes,

Num duelo sem tréguas, a turvar

Os claros tons das horas transparentes.

 

Nem crédito de esperança consentida,

Nem a certeza de um naufrágio ecoa,

O tempo inunda a sala entristecida

E um sorriso de rosas que destoa.

 

Natércia Freire disse que a escrita de Soledade Summavielle “não é friamente geométrica, é “circular.” Justamente uma poesia harmoniosa, confiada na fortaleza e urgência do que diz, com características femininas de doçura e situada entre as facilidades que desterra e gula de processos que, muita vez só processos são. Um livro muito belo que do primeiro ao último poema afirma uma personalidade plenamente realizada porque responde, de modo original e simples, ao chamamento da Beleza.

E não há nada mais refrescante do que poder levanta da secura dos areais anónimos um “Búzio” com esse e escutar seus acordes e ressonâncias.”

 

João Maia

(Crítica ao livro “Búzio” transmitida no programa “Tempo Literário” da E.N. em 7-3-1973 às 21,30h em Lisboa, 2)

 

 

 

 

“Não sei se o “vate”, etimologicamente, o adivinho, é de facto um intérprete da poderosa força do divino ou das poderosas forças da natureza; do seu mundo interior ou das suas reacções ao quotidiano; da música que há em tudo o que o cerca, do drama do dia-a-dia, da alegria de viver ou da tristeza de estar no mundo. Porque tudo isso está ou deve estar na Poesia. E o poeta, interpretar, sentir, declarar todas estas forças que são ocultas ou inacessíveis para os outros, mas não para si. Isso o diferencia dos outros criadores. Isso o separa dos outros mortais. A quem, aliás que não se exprime e eis o “vate”, o adivinho. Que não é um artista com os outros, que sente diferentemente dos outros, que sabe por instinto coisas que aos outros escapam e que sonda mundos interiores (não lhe chamaram, por isso, “explorateur du rêve?) ou decifra símbolos, enquanto demiurgo, isto é, no acto criador.

Ao ler o quinto volume de poemas de Soledade Summavielle – Búzio – surgiram-me estas interrogações, todas elas fruto da leitura que acabara de fazer. Pois há nestes poemas poder divinatório sondagem interior, reacção ao quotidiano, música interior a completar a rima e o ritmo do verso, alegria de viver, sofrimento. Há sobretudo – Poesia. E poesia é um pouco de tudo isto que fica declarado. E também a especial estrutura que é, neste caso, a personalidade da autora. Com uma formação artística que vai da música às belas-artes. Soledade Summavielle chegou, aparentemente, tarde, à poesia. No meu julgar pessoal chegou quando devia chegar. De modo a que a sua poesia não tenha a ganga dos principiantes e dos iniciados e surja, logo, a partir da primeira recolha de versos (“Sol Nocturno”) na configuração de uma poesia definitiva, na inspiração e no acabamento formal. O poeta já não procura um caminho: sabe qual é o seu e realiza-se, aí em plenitude.

Esse caminho é a obra toda que fica para trás, nestes últimos anos, obra que aliás a Academia das Ciências distinguiu com um dos seus prémios: “Canto Incerto”. Ora é nesse roteiro passado e presente que havemos de descobrir as virtudes desta poesia, uma poesia que se revela uma personalidade riquíssima, nas várias gamas da sensibilidade, nos revela ainda um eterno fluir lírico, esse que nunca se repete, como no rio imaginário de Heraclito, em cujas águas correntes não nos banharíamos duas vezes; de igual maneira o estilo desta poesia. Onde a imagem sabe fazer-se acompanhar da palavra, onde o substantivo toma o lugar da adjectivação fácil, onde a rima surge tão naturalmente e tão a propósito, como a música inerente a cada verso e completa através daquela.

Um pouco de simbolismo, aqui e além? Sem dúvida. No título que depois serve de tema para o primeiro poema e em “Labirinto”, em que a estrela do mar define uma atitude perante a vida, nuncet semper. Mas o volume de Soledade Summavielle derrama os vários ângulos de um lirismo todo vivido e sofrido numa aproximação vital com o quotidiano, de onde recolhe as emoções, os perfumes, os risos e as lágrimas. Nessa maneira muito pessoal de encarar a vida e de a viver, estará o sortilégio imediato desta poesia, toda feita de verdade e de autenticidade. Portanto humana até àquele plano em que ser-se assim, é acompanhar os outros, nas mesmas ansiedades, nas mesmas alegrias e nos mesmos risos. Um humanismo gratuito? Sem dúvida. Melhor: um humanismo sem compromissos.

Se houvesse dúvidas bastaria abrir o livro “Búzio”, ao acaso.

Pois em qualquer um dos poemetos que constituem verificaremos que a Poesia está ali em visita, uma visita que se reparte por toda a parte a poesia de Soledade Summavielle e não é só aqui. Esta constância em se manter poeta, sem uma quebra, sem uma hesitação, sem dúvida, sem uma pausa, aproxima-se daquela Cecília Meireles que escreveu um dia, a abrir um livro de poemas: “Canto porque o instante existe/ E a minha alma está completa. / Não sou alegre, nem sou triste: / Sou Poeta.”. Assim Soledade Summavielle. Assim a sua Poesia.”

 

Amândio César

Época, 25 de Fevereiro de 1972

 

“Não sei bem porquê, tenho sempre a impressão de que a poesia é um golpe de asa que poisa um livro em que essa mesma poesia mora. Fala mais alto sobre um livro em que essa mesma poesia mora. Fala mais alto que o sonho e, contudo, o sonho, é qualquer coisa de belo que não preocupa quem o usa. Acontece. Acontece porque o poeta que o procura, ouve-o, inquieta busca para encontrá-lo, a fim de poder sentir o que ele pretende dizer à sua sensibilidade. E afinal o que o poeta diz, o que nos quer dizer, o que sente, o que nos quer fazer sentir, é depois mais que nos dizer do que a poesia que traduziu e o leva a satisfazer a sua intranquilidade. E o que há nela de belo, de subtil, de sinceridade, de ternura de espanto, é precisamente o que o poeta escreve e publica, indicando assim que não há mais nada que o sonho que repete e fala e nos indica o caminho que conduz e vai pisando no arco esguio de uma curva imensa que é o seu íntimo e o torna deste modo poeta. Não é ele que escreve o que quer, é esse seu íntimo que lhe põe a ânsia em frente do que a sua inspiração lhe impõe. Não é ele que escreve o que quer, explicando, é a esse seu íntimo que obedece.

Ora Soledade Summavielle que publicou agora mais um livro de versos – o quinto – faz-me lembrar uma pequena dobadoura onde ela coloca a linha com que necessita escrever, mover a sua sensibilidade e dobadoura movimenta a linha e a linha é, finalmente, a tinta com que escreve os seus poemas curtos e brevesque costuma torná-los ainda mais altos, mais firmes, mais belos, que ela não pode esquecer, que enche os olhos e a alma de mistério, de encantamento e de luz:

 

“Qualquer coisa que dói neste silêncio,

Neste tempo de espera e de ansiedade,

Sem paz, que não a deste, flor nocturna

Orvalhada de ausência e de saudade.”

 

E é essa ausência e essa saudade que vêm junto da poetsa dar inteira presença da inquieta sombra que ela arquitectou.

Ela mesma o confessa quando diz:

 

“Só um livro recolhe a voz do poeta

Como um búzio recolhe a voz do mar.”

 

É essa voz que ela ouve, que ela escuta, que ela traduz, no sentido de marcar a sua ânsia. É assim que ela se transforma na grande poetisa que realmente é.”

 

Alfredo Guisado

República, 11 de Março de 1972

 

 

“Um tempo rítmico e dorido, um tempo de subtil harmonia estética, em que tudo concorre para dar ao poema a vida da exactidão, quer verbal quer imagística, é o tempo poético de Soledade Summavielle. Uma espécie de metafísica do éfemero e do quotidiano invade de transparência e diafaneidade o momento”. “De outros poetas se poderá dizer que a sua inspiração, se escrita geometricamente, é quadrada ou rectangular. Mas, a de Soledade Summavielle é circular. O poema nasce e, nos mais diversos trânsitos, logo se completa em harmonia, voltando ao ponto donde partiu o que poderia significar-se de um outro modo: voltando à fonte donde jorrou e indo a terminar em frescura e jamais em escura.” “E este regressar contínuo ao príncipio, este partir sabendo aonde vai chegar não tem nada de limitação. Pelo contrário. É a consciência da prisão terrena, quando se provou já, em grande altitude, a libertação fruída nos seus quatro pontos cardiais. Paralisada inquietude / Mudez das palavras ditas / Tudo é nada e nada é tudo. / Fim das coisas infinitas”.

Foi a respeito do Canto Incerto, de Soledade Summavielle, que, certa mulher-poeta, escreveu as palavras acima transcritas.

E, ao lermos o presente e novo livro de Soledade, Búzio, vemos acentuar-se mais esta impressão de exacto, de poema feito logo que a autora escreve o primeiro verso. O poema acontece, como acontece a harmonia musical. Jamais se perde ou se desiquilibra. Jamais a imagem perturba ou adultera a linha cantante do pensamento. E, por via desse concluio, é possivel recerbermos dos versos de Soledade Summavielle a beleza do pensamento, dada através do ritmo das imagens, casada fuidicamente à pureza verbal: Quero voar contigo / Entre nuvens de tule / Sem destino e sem mágoa / Ao sopro brando e fresco / De limoeiros e guitarras de água. Ou então, em decisivo aprumo, frente a uma dor recebida corajosamente – destino, consumação, aceitação: Acontece-nos ver chegar a dor / Como acontece o bem / Como acontece o mal. / Inexoravelmente./ Importa é recebê-la vertical,/ Para mostrar ao mundo que se é gente.

Num tempo em que a Poesia apenas sobrevive mutilada e em ruínas, um livro como este Búzio, é um espaço ático de puríssima inspiração, beleza e fonte.

 

Diário de Notícias, 26 de Março de 1972

 

Críticas ao Livro Búzio

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