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«Soledade Summavielle é, por assim dizer, uma personalidade poética inseparável da sua poesia. Os seus versos estão impregnados de uma força interior, de uma subjectividade lírica sui generis que só determinadas circunstâncias, produzidas em sedimentação especial, no mundo das impressões emocionais, poderiam causar. Não me refiro, evidentemente, ao estilo pessoal, na medida em que este se filia numa propensão inata para dar forma a determinado conteúdo, mas sim a esse mesmo conteúdo eivado, na riqueza cultural, de uma intimidade tão profunda que, na sua obra, a confunde com o próprio objecto da poesia.

Foi esse género de poesia, de comunicação confessional e profundamente subjectiva, que Croce, na sua «Crítica e Storia delle Poesia», defendeu como a única de características verdadeiramente poéticas.

Na génese da personalidade poética de Summavielle, que é, de algum moda, pensando e sentindo res cogitans et res extensa da sua obra, contam, muito para além duma sólida cultura liceal ou do seu curso de canto—cuja fruição, embora, lhe permitiu descortinar novas tendências, como a de ceramista notável — as potencialidades intelectuais inatas e o temperamento-carácter que se moldou ao longo dos anos, nas circunstâncias especiais do seu currículum vitae.

Formal e acidentalmente, Summavielle parece ter nascido poeta, herdando nas virtualidades inatas o gosto para a poesia. Provam-no a «fluência», a «sonoridade rítmica», a «cadência» e o «comprimento» dos seus versos, propriedade decorrentes duma naturalidade perfei-tamente desprendida de quaisquer esforços ou rebuscamentos. É uma propensão que se exerce numa fluência quase automática, para uma musicalidade atraente.

É certo que, localizada no seu tempo, Summavielle, como qualquer outro poeta, teria de desprender-se das matérias poéticas hereditárias em obediência a novas estéticas de poesia livre, mas esse facto, cuja evolução subtil se apercebe, em crescente preocupação desde «Sol Nocturno» para «Tumulto», «Âmago», «Canto Incerto», «Búzio» e «Sagitário», parece ter resultado, sem o menor esforço, não só no campo da objectividade formal, mas também nos elementos significantes da sua poesia. Além de um respeito especial pelo soneto, que figura em quase todas as suas obras, desapareceram nos seus últimos livros as preocupações de submissão a regras fixas e resultados padrões formais livres, de uma harmonia inexcedível. Este facto deve ter contribuído para que já no «Canto Incerto» Soledade Summavielle tivesse sido galardoada com o Prémio de Poesia Casimiro Dantas, da Academia de Ciências de Lisboa.

No que toca ao significante, também a mesma evolução se pode constatar facilmente a partir do rigor semântico das palavras, nas primeiras criações, para uma linguagem figurada e simbólica, do tipo: «A noite vestiu-se hoje de violetas / Para me dar um ramo imaginário» ou «As laranjeiras cobriam-se de um manto nupcial», e depois, já no último livro «Sagitário», a coisificação de ideias como «Percorro a tua alma, larga praça florida» ou ainda uma graciosa violentação semântica como «Graças a ti, mergulho o pensamento / E distendo-o na água» ou «Um lírio de silêncio».

Educada no seio de uma família reconhecidamente cristã, por tradição, mas positivista, por princípio e, se não agnóstica, pelo menos indiferente aos grandes problemas da metafísica, Summavielle não inclui, nos seus temas, a especulação transcendente. As preocupações metafísicas parecem terminar onde acabam as potencialidades limites da compreensão humana, numa aceitação resignada e indiscutível do statu quo da religião tradicional. Positivamente e como por extensão da temática do amor, a poetisa resigna-se no doce amargor da profunda saudade daqueles que amou e o tempo escondeu. «Tudo se esbate no tempo / Excepto a cor da saudade» ou «A palavra 'Natal' ... / .../ sugere-nos a vida/... / Abrindo a sensação de um Deus que a determina». Nascida no Minho, onde a Natureza é pródiga em colorida, onde os prados são férteis no acto criador, não admira que Soledade Summavielle escolhesse a Natureza e o Amor para «assunto», na recolha dos seus temas predilectos. Não têm conta, e são dos maiores de todos os tempos, os poetas do Amor e da Natureza. Desde a poesia grega de Safo e Alceu, desde Camões lírico até à poesia simbolista dos nossos dias, desde as «Bucólicas» de Virgílio às «Éclogas» de Rodrigues Lobo, desde a «Chuva da Tarde» de António Sardinha ou da «Clepsidra» de Camilo Pessanha aos sonetos angustiados de Florbela Espanca que a Natureza e o Amor foram temática inesgotável.

São, efectivamente, a Natureza e o Amor as coordenadas dominantes do quadrante ontológico em que se localiza a poesia de Summavielle, mas a verdadeira estrutura substancial só encontrará realização completa quando numa absorção íntima dos impulsos sentimentais da poetisa. A explosão sentimental de cada poema só assim pode ser compreendida. Naturalmente nota-se a tendência da poetisa para cantar realidades espectaculares da Natureza, mas até mesmo aí a alma do poeta se confunde no conteúdo, cedendo-lhe ou tomando dele o sabor sentimental que o momento sugere. Cantando o mar o seu pensamento baila na crista argêntea das ondas: «Queria-me vestida / De vento e maresia, / Ser onda do mar largo /Sobre a maré vazia»; se canta a floração das plantas, comunga nesse cósmico festival: «Veio vestir-me o Verão de flores concretas ...» mas, para além desses casos espectaculares isolados, colhidos ora no concreto, como: Mar, Sol, Céu, ora no abstracto, como: Esperança, Solidão, Origem, onde, aliás, cada título corresponde, numa lógica rigorosa, ao respectivo conteúdo, a Natureza sugere-lhe o «tema» da «mudança» e por extensão a inconstância do tempo, o envelhecer, etc. Cantando a Primavera no seu último e porventura mais conseguido livro!, «Sagitário»—«Um desabrochar de pequeninas folhas / Esmeraldas do tempo / Vestindo a árvore nua / Que se exibe de repente engalanada ...»—, já tinha em «Âmago» cantado o Verão na plenitude consequente das promessas da Natureza, maternal, do tempo anterior: o Outono, no cair das folhas e no conforto ,dos frutos recolhidos; e o Inverno, na sinfonia rústica dos elementos, ao calor da lareira. Summavielle dá vida, neste tema, ao tempo inexistente de Kant, referenciando-o no lento evoluir das novas manifestações da Natureza, em cada momento.

Mas este ciclo do «eterno retorno», que, morrendo agora logo renasce, verifica-se igualmente no Amor. Agora correspondido numa alegria esfusiante: «Chegaste ... / E vieram melodias de longe / «Nos teus gestos». Logo o desalento e a dúvida: «A chama circular daquela estrela / Que já nos deslumbrou, onde está ela? ...», para a seguir se erguer uma esperança renovada. Como consequência do Amor, resulta o tema da saudade dos entes queridos, dos objectos amados, perdidos no Tempo. O pensamento do poeta detém-se nas lembranças saudosas do passado: «Búzios me soam pálidas mensagens / Duma alegria solta / Como se fossem ecos diluídos / Dos dias plenamente construídos / Em que tudo se abria à minha volta»; e na eterna insatisfação da saudade é na poesia que a poetisa encontra o seu refúgio: 

 

Este amor povoado

De luzes cintilantes

Que devolve o passado

De tons alucinantes

 

Este amor melodia

Que nos canta na alma.

Este amor harmonia

Que ora exalta ora acalma ...

 
J. BAPTISTA NUNES

Estudo de J. Baptista Nunes: sobre a Poesia de Soledade Summavielle no Livro Artífices da Palavra

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